segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Ninguém é insubstituível


Tenho de voltar a ler o Kafka, mais exactamente a história do homem-barata.

Lendo outra e outra vez talvez perceba, porque eu acho que na realidade toda a gente é insubstituível. Claro que se pode viver sem uma pessoa, seja ela quem for, mas também se aprende a viver sem pernas e braços - alguém quer defender que são substituíveis?

Poder viver sem algo ou alguém não quer dizer que esse algo ou alguém não é insubstituível, quer dizer que o homem se habitua a tudo, como as baratas.

Ora batatas, voltei ao mesmo - quando li esta história pela primeira vez fiquei que tempos a pensar que a questão não era a família ter aprendido a viver sem o homem, a questão era o homem ter aprendido a viver barata.

Hélas!

21 comentários:

Luís Maia disse...

Não interessa nada para o conteúdo da ideia, mas não consigo afastar a ideia de que não era uma barata mas uma mosca,

mac disse...

Uma mosca,Luís? Se calhar era, o desgraçado do Kafka nunca diz que insecto é, se bem me lembro.
Mas "(...) o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e (...) o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados (...) as inúmeras pernas,(...) miseravelmente finas" lembram-me uma barata.

mac disse...

já estou a ler, como é óbvio. Rais ma partam!

teresa g. disse...

Se calhar era um híbrido de insectos mal-amados - também não me lembro o que era.

Pode-se sobreviver habituando-se a viver sem braços ou pernas. Eu conheço pessoas que o estão a fazer e parece-me uma atitude corajosa. Continuam humanas porque continuam a ser amadas da mesma forma como quando tinham braços.

Mas aprender a viver como uma barata só se os outros virem uma barata onde está uma pessoa sem braços ou pernas. Isso é realmente terrível e acontece.

Pode-se colcar a questão se os outros é que se deixam arrastar pelo sentimento 'barata' da pessoa em questão. Não sei.

Só sei que o sr Kafka era uma pessoa deprimida e deprimente. A evitar em certas alturas (pelo menos por mim)

mac disse...

Não, não, teresa g., não é nada disso!

A questão não é se uma pessoa sem braços e pernas será humana (e porque raio não seria?!?), a questão é que braços e pernas são insubstituíveis apesar de podermos aprender a viver sem eles.

Tal como com as pessoas. Aprendemos a viver sem elas, que remédio, mas são e serão sempre insubstituíveis.

Kafka era deprimido e deprimente: sofria. Fez uma coisa que eu própria gostaria de fazer: em vez de se encolher cheio de pena de si próprio, transformou o seu sofrimento em obra para os outros, doou-se. Com uma arte que invejo: embora a barata me incomode o espírito, esse incómodo é a medalha do seu mérito...

Às vezes a vida não é agradável, mas há que vivê-la mesmo assim. O que é imperdoável (para mim) é negar a realidade e fingir que o que não nos é agradável não existe...

mac disse...

teresa g.: "Continuam humanas porque continuam a ser amadas da mesma forma como quando tinham braços" não é a minha maneira de ser.

A minha maneira de ser é continuam humanas porque a humanidade não reside em pernas ou braços. Se não forem amados continuam humanos, infelizes como qualquer humano não amado

mac disse...

teresa, hoje não foi um dia fácil, o que é fraca justificação, bem sei - nada dá razão a uma agressividade desnecessária.

As minhas desculpas.

AC disse...

Não acho que Kafka seja uma boa leitura para ti no tempo presente.
Devias ler coisas menos sofridas ou pelo menos menos deprimentes.

Vê as coisas sob este prisma: Toda a gente é insubstituível, mas ninguém dura para sempre.

E é mais fácil lembrares-te de alguém que teve uma vida farta e cheia do que alguém que não a pôde viver porque morreu muito antes do tempo. Sei do que falo, e tu sabes que eu sei. A dor não tem rugas. Nunca tem. Mas virá o dia em que te hás-de lembrar sem quase dor. E isso é bom.

AC disse...

Relativamente ao bicho em causa, parece-me que Kafka não diz qual era o bicho, mas a mosca é de um filme de SF; um sujeito faz experiências de teletransporte e teletransporta-se com uma mosca que entrou na câmara estanque. A partir daí transforma-se em mosca pouco a pouco.

teresa g. disse...

Mas eu estou plenamente de acordo com tudo o que disse, Mac, nem o que disse contraria aquilo que eu pretendi dizer! Acho que são dos tais desencontros que se tornam fáceis nos diálogos virtuais, e se resolvem mais facilmente em presença ;) Bem, não sei.

E não precisa de pedir desculpas, só defendeu o seu ponto de vista, além de que eu sei perfeitamente o que são maus dias, nos últimos anos não me têm faltado.

É verdade que Kafka nos deixou uma obra notável, como vários outros escritores e artistas que transformaram o sofrimento e o lado negro da vida humana em obras de arte. E é imprescindível conhecê-los, como é imprescindível conhecer o lado sofrido da vida humana para crescer.

O que eu quis dizer foi o mesmo que disse AC, há alturas em que estamos no limite e temos que nos proteger para não passarmos esse limite. Disso depende a nossa sanidade e o bem estar que podemos transmitir aos outros. E a arte, para mim principalmente a música, mas também a literatura, tem a capacidade de nos fazer entrar em ressonância. Pode-nos ajudar a ultrapassar momentos difíceis, mas também nos pode deixar pior. Falo por mim, a maior parte das vezes deixa-me pior, e por isso evito até passarem as tempestades. É uma questão de gestão :)

Fátima Santos disse...

escrevi uma lauda, mas fica isto apenas
sabes, quando estamos tristes porque nos falta só há um modo o choro - que nada de entretenhas com filósofos ou escritores ou gente de testemunho farto e menos ainda, te digo, metáforas e provérbios
um choro ranhoso, soluçado lava a alama e os olhos e fica-se a encarar a perda ( que é disso sempre que se trata)com mais realidade
um choro, aconselho
solitário
numa praia
ou na dobra de um parapeito de janela
e com ranho
abraço minha menina de olhos enviesados

privada disse...

sempre pensei que era uma centopeia, uma barata não tem tantas pernas e por acaso, ainda ontem pensei nisso, é que nao conseguia acordar, erguer-me na cama, e depois nao conseguia dormir , porque acordei a pensar na centopeia, depois lembrei - ah esta cena vem da metamorfe, mas só me lembrava quando o empregado do patrão o foi chamar a casa, quando ele ainda não sabia que era uma centopeia, e nao me lembro do resto, e fartei-me de tentar recordar.

mas para essa das pernas, temos os Bras Cubas, "as minhas pernas, nunca tinha pensado nelas, mas naquele momento elas tomaram para si a missão de me levar a casa, sem tropeçar, sem cair, sem saber que ia para casa, decidiram entre as duas, "ele está atrofiado, temos que o levar para casa" e levaram, pegaram em mim e transportaram-me. desde aí tenho muita consideração pelas minhas pernas" +/- isto

e dai passamos para a grande ideia que quase o sufou, abriu a janela para apanhar ar e acabou por morrer de pneumonia, morreu em prol de uma grande ideia :-))))

ou então passamos, para alguem que garante ao Mundo que nascemos para o eterno retorno e a imobilidade da velhice deve ser encarada, como um regresso ao ventre, afinal, só o universo nos pode ter concebido
Foi Nietzsche?! Acho que foi.
Não sei, e depois não durmo. Raio Mac, estás sempre a levantar questões ...

Anónimo disse...

É Xaninha, estou de acordo com a tua cunhada, chora...chora até não puderes mais e vais ver que quando parares tudo ficou mais leve...

Marques Correia disse...

O ser ou não ser substituível tem mais que ver com a necessidade de substituir ou, se quiserem, com a falta que faz (ou não faz)o que se deixou de ter.
Em rigor, só é substituível o que é feito em série, não se distinguindo o substituto do substituído.
As pessoas são, por isso (não há duas exactamente iguais) insubstituíveis.
Mas, se nos abstrairmos de picuinhices e formos directos à função, podemos sempre arranjar um tipo que desempenha uma função tão bem ou melhor que o que se foi.
Nessa linha ninguém é insubstituível desde que a valorização das "picuinhices" o permita.
Mas o pior (e o melhor...) é quando perdemos alguém e ficamos muito bem assim. Sem queremos (vade retro!) substituto.
Na boa...

mac disse...

O Luís e o privada foram quem percebeu melhor o meu pensamento, os outros estão um bocado a oeste - desta vez não me estou a lamentar, estou a constatar fria e concisamente um facto.
Não me morreu ninguém fisicamente mas estão moribundas várias pessoas de quem gostava - continuam a andar por aí na sua vida mas já não são as minhas pessoas.

Mas, meus amigos, quão rica sou! Perto ou a oeste, o vosso cuidado dá verde à couve.

AC, a metamorfose não é um conto sofrido, acho eu. É um retrato simples da incapacidade por parte de todos de reconhecer a realidade - sim, não é só a barata que não percebe que agora é uma barata, o resto do pessoal também não percebe que a barata é a pessoa que sempre os amou.

O verdadeiro problema dos desaparecidos, cara mia, é que fazem falta - mas fazem falta a nós, não a si próprios (ando-me a repetir, já escrevi sobre isto...), tenham eles morrido no sentido literal ou no sentido figurado. E nada disto tem a ver com a idade - nem de quem morre nem de quem fica.

teresa, sim, gestão é uma das palavras mais difíceis que conheço.
Mas porque é que temos de nos proteger? Não há ninguém ao ataque, só a vida a passar... E ela nunca espera por ninguém.

Maria de Fátima, chorar baba e ranho? Nopes, reservo o meu ranho para os momentos de desespero total: se nada se pode fazer, sim, chorar alivia - sempre estamos a fazer qualquer coisa, afinal. Não adianta nada mas estamos em acção, choramos. Com o tempo gasto nisso talvez passem a ser possíveis as acções que interessam.

privada, uma centopeia? É curioso como nunca dizer que insecto é permite tantas e tão diferentes visualizações...
A mim o que acendia (pois, já reli...) memórias era a maçã dolorosamente enterrada na carne - qualquer um deles a poderia ter atirado mas nunca nenhum se atreveria a retirar a maçã (isto poderia ser matéria para muitos e variados artigos!)

Carlotinha, quem chora não faz mais nada. E eu tenho tanto para fazer...

mac disse...

Marques Correia, hã?
Isso é um contra-senso, se ficamos muito bem assim e não queremos substituto, então não perdemos alguém, ganhámos alguma coisa...

teresa g. disse...

Bem Mac, acho que também não percebeu o meu pensamento, mas isso é bom sinal. Espero que não venha a perceber :)

Não me apetece entrar em mais dissertações, como já disse por aí, cada vez me agrada menos o meio virtual para estas conversas.

Fico à coca, para não aparecerem por aí lagatas malvadas a roer a couve :)

privada disse...

A empregada chamava-lhe barata, mas não há baratas nos tectos, digo eu, daí pensar sempre que é uma centopeia, muitas pernas.

A maçã, o esconderem das visitas, o quarto que acumula cada vez mais lixeira, a falta de interesse se come ou não, a empregada, aiiiiiiii, é que depois acontece igual a qualquer um, e apesar de se conhecer a historia não se consegue evitar, seguir todos os passos deste que é todo processo, e enfim, se voltasse atras nunca teria lido.

AC disse...

Não é um conto sofrido? Engraçado, eu sempre achei que sim... aliás como todas as metamorfoses.

Mas isso depende sempre da sensibilidade e da individualidade do leitor, de facto.

Quando ao resto, gostei muito do comentário do Marques Correia.Os desaparecidos só fazem falta a quem os amou. Parece-me que para não variar, a frequência da onda não é a mesma.

Quanto à morte física ou no sentido figurado, acho que são muitissimo diferentes: uma é ineluctável e sem retorno; a outra depende da nossa vontade ou pelo menos da vontade de alguém, e é sempre reversível. Mas é sem dúvida uma questão pessoal.

Já estou como a teresa g..; estas conversas virtuais dão por vezes os mais estranhos resultados...

mac disse...

teresa, acho que percebi - mas não concordo. Também é perfeitamente possível não ter percebido...

Obrigada pela vigilância! Mas não serão malvadas, só têm fome, coitadas - se puder, apanhe-as cuidadosamente e largue-as num bosque cheio de sombra, ficarei feliz e verdejante, tks!

privada, há baratas nos tectos, isso posso eu garantir; aprendi em Luanda que é perigoso atirar-lhes coisas, têm tendência a voar na direcção do projéctil.

Nunca teria lido? Ummmhhhhh....

AC, todas as conversas são assim. Eu continuo a achar que é mais fácil entendermo-nos por escrito, quanto mais não seja por notarmos melhor que não estamos a falar da mesma coisa... A situação mais frequente - quantas vezes a testemunhei, quantas vezes a vivi! - é a das pessoas julgarem que estão a falar do mesmo, quando uma se refere a alhos e a outra a bugalhos.

Marques Correia disse...

Contra-senso, o quê?
Estrava a falar de posiibilidades e uma delas é o b(r)aço que perdemos não nos fazer falta. Passando para pessoas há, certamente, pessoas que são uma espécie de baço - vão-se mas não deixam "buraco": é como se estivessem na Cochinchina e se tivessem mudado para a Patagónia. Igualito!
Às vezes só identificamos uma pessoa-baço, quando ela se vai.
São só factos e possibilidades em que não precisamos (o querer é irrelevante quando não precisamos) de pessoa-peça de substituição...