segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Ninguém é insubstituível


Tenho de voltar a ler o Kafka, mais exactamente a história do homem-barata.

Lendo outra e outra vez talvez perceba, porque eu acho que na realidade toda a gente é insubstituível. Claro que se pode viver sem uma pessoa, seja ela quem for, mas também se aprende a viver sem pernas e braços - alguém quer defender que são substituíveis?

Poder viver sem algo ou alguém não quer dizer que esse algo ou alguém não é insubstituível, quer dizer que o homem se habitua a tudo, como as baratas.

Ora batatas, voltei ao mesmo - quando li esta história pela primeira vez fiquei que tempos a pensar que a questão não era a família ter aprendido a viver sem o homem, a questão era o homem ter aprendido a viver barata.

Hélas!

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Dúvida


Está internada outra vez.

Desta feita vai dormir na maca - não havia camas livres. Vá lá que não foi preciso ficar no corredor, a sua desgraça exposta publicamente a quem passa. Mas não, arranjaram uma parede livre numa camarata cheia: as pessoas que trabalham nos hospitais não são de forma alguma desumanas. Aprendem a defender a sua sanidade mental contra a rudeza da realidade mas, sendo possível, evitam instintivamente agressões à dignidade humana.

Devo ficar agradecida pela parede protectora ou furiosa por uma pessoa velha, frágil e doente, acamada há mais de um mês, passar a noite - e será só uma? - numa maca, coisa concebida para se estar um par de horas mas onde ela já está há mais de 10? Um colchão firme - duro, para frágeis ossos com pouca carne! E se eu começar a raciocinar que são ossos e pele já martirizados por tanto tempo de inactividade forçada, formam-se nós onde eu nem sabia que havia corda. É uma área escassa e escorrega-se por ali abaixo até os pés entrarem pelos espaços existentes do fim da maca, coisa impossível de desenvencilhar no actual estado de confusão mental.

Definitivamente não é adequado a uma descansada noite de sono. Mas talvez a exaustão de um dia passado nas Urgências disfarce o incómodo... Espero.

Ainda não consigo mandar tudo e todos às urtigas, fazer tábua rasa de tanto anos de tanta gente na Faculdade de Medicina, borrifar-me para os estudos relevantes e estatísticas de hospitais. Mas já estive mais longe, confesso.

Hélas!

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Torrada com manteiga


Dei-lhe um bocado de torrada cheio de manteiga mas antes de lhe deitar o dente o canito olhou para mim com um ar de tal forma interrogativo que me vi obrigada a interrogar-me também: porque carga de água tenho eu a mania de que o espírito crítico deve estar sempre ligado, quer se trate de torradas com manteiga ou questões momentosas de ética?!?

Só me traz dissabores, esta mania. Leva-me a falar quando devia estar calada, a agir quando devia estar quieta, sempre a chatear os outros e a mim própria porque o risco está torto quando podia perfeitamente e sem esforço extra estar direito.

É isto e o vício de dizer a verdade quando ela não me é pedida. Já me meti em vários molhos de brócolos por causa disso e não aprendo, continuo a dizer a minha verdade - tenho a mania que devo dizer o que realmente penso em vez de sorrir com ar pachola e manter intacta a superfície do lago. Especialmente quando gosto do tipo que vai no barco, parece um contra-senso mas não é.

Não sou fã de terramotos, prefiro a água mole em pedra dura. Mas a água deve ser limpa e clara, se não a pedra mancha...

Razão tem o meu vizinho do cimo das escadas, quando diz que sou chata como o caraças (também diz que eu sou torta mas isso é disparate - chata com estas coisas reconheço que sim mas torta acho que não sou - falta-me maldade. É maldoso, o meu vizinho).

Hélas!

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Isto tem dias


Hoje foi um dia difícil, contaram-me. Tiveram de fazer manualmente uma operação que em geral é autónoma, serena e discreta; isso acarretou esforço, dor e humilhação, uma impotência que dói... Foi mau, pronto.

Foi com esta frase que hoje fui recebida, "Nunca mais, nunca mais!" e quando eu respondi "mas tu foste enfermeira, sabes que às vezes não há alternativa..." o silêncio e a impotência desesperada que me responderam fariam a felicidade de um pintor talentoso mas a mim, sem qualquer dom para as artes, apertou-me o coração.

Depois o quadro mudou - contou coisas imaginadamente reais de forma convicta e quando chegou o neto favorito, riu-se com ele, uma galhofa pegada sobre pequenos disparates como escovas de dentes para cães e a formação de uma banda de garagem a cantar "Ai, ai, ai, minha machadinha..." acompanhada por gaita de beiços. Sorria um sorriso todo torto, muito contente.

Quando a conversa derivou para o fisioterapeuta que a levanta sem esforço e a faz andar (e que é um belo homem, diga-se de passagem) o neto mete-se com ela e ela ri-se, uma alegria tão... inocentemente alegre. Eu digo-lhe "Tu estás muito saída da casca, hoje!" e ela ri-se novamente e diz "É que ele levanta-me assim!" e faz um gesto aéreo, que significa o poder da força que ela não tem.

Não a via alegre há tanto tempo. Um sorriso de alegria, especialmente torto, vale tanto!

Hélas!

sábado, 21 de agosto de 2010

Laços


Tenho várias irmãs de sangue, fantásticas nas suas diferentes inocências e purezas e a quem nunca telefonarei numa noite pessoalmente sombria. Estou certa que me responderão quando eu pedir (têm provas dadas, qualquer uma delas) mas nunca as chamarei por necessidade própria e elas nunca adivinharão nada que eu não lhes disser.

Tenho outras irmãs, não de sangue nesse sentido comum mas que me correm nas veias. A qualquer delas, se telefonar às 4:00 da manhã atendem-me e não ficam tontas; se for caso disso metem-se no carro e vêm ter comigo se não for, dão-me na cabeça, chamam-me nomes e aí posso eu ir dormir descansada.
Com qualquer delas posso dar-me ao luxo de confessar receios idiotas, ser irracional, entrar em pânico ou chorar; elas ouvem e vêm ter comigo se for caso disso e se não for desancam-me e põem-me novamente na linha.

Muita coisa que não digo elas adivinham; e quando nego convictamente olham para mim com aquele ar e não dizem nada, aceitam as minhas limitações tranquilamente. Tal qual eu faço com elas. Tudo sem subir ou descer um grau nas nossas considerações. É espantoso, não é?

Não me devem nada nem eu a elas, apenas aceitamos tranquilamente os nossos defeitos (ninguém é santo, pois não?) e nunca traímos a confiança mútua, seja porque razão for.

Os ventos e as marés fizeram as nossas vidas cruzarem-se, o resto veio dos seus espíritos leais. Obrigada, irmãs de coração.

Hélas!

domingo, 15 de agosto de 2010

A coisa do tempo


Alguma vez mais te levantarás e do alto do teu metro e sessenta afirmarás orgulhosa que não precisas de nada nem de ninguém?

Alguma vez poderás dizer novamente e sorrindo que não era preciso, francamente..., como dizias antes quando recebias um presente (e eu ralhava, ralhava...)? Alguma vez mais na tua vida poderás menosprezar uma oferta? Alguma vez mais poderás escolher? Poderás alguma vez mais na tua vida ser livre?

Não e este facto derrota-me. A batalha é apenas contra as pequenas tristezas, os pequenos mal-estares, coisas pequeninas, a boca seca, o guardanapo que falta, a náusea, a dor de barriga, a hora que custa a passar. Irrelevante para o mundo inteiro mas que é agora inteiramente o teu mundo...

Tenho uma foto de uma pintura tua na parede: um sorriso à Gioconda mas com os olhos e a pose diferentes. Determinados, testemunham a vontade férrea da altura em que eras assim.

Mas o Tempo é todo poderoso. Transforma em lamurias o mais nobre discurso, em gemidos o sorriso estóico, em súplica o orgulho silencioso.

Haverá quem diga coisas e loisas, uns com razão, outros sem ela; eu cá só digo que a coisa do Tempo é cega, surda, imprevisível e amoral. Muito sinceramente, espero morrer antes de lhe cair nas garras.

Hélas!

sábado, 14 de agosto de 2010

O tempo da coisa


O Homem é temporal; os seus sentimentos e as suas razões são influenciadas pelo tempo em que acontecem - é diferente ser ignorado em criança ou em adulto, estando doente ou saudável, etc., etc. - e portanto as suas acções têm também de ser avaliadas com valores diferentes consoante o tempo em que acontecem.

Dada esta premissa, a mesma acção pode ou não ser correcta: um murro no focinho de uma besta humana pode ser correcto quando a dita besta está de pé e incorrecto quando a besta está no chão, toda partida e a chorar pelo pai e mãe. A besta é a mesma mas as circunstâncias não.

Mesmo quando a acção é uma não-acção, esta dicotomia mantém-se: parece-me correcto ignorar um tipo que foi mau para nós quando ele está com dificuldade em pedir um café num bar em Londres e incorrecto quando ele está a ter um ataque cardíaco, seja em que local for. Pura e simplesmente, o tempo e circunstâncias são diferentes; a mesma acção - exactamente a mesma, ignorar o energúmeno - não tem o mesmo valor ético.

É a mesma coisa, quando se trata de proteger a nossa sensibilidade: para quem tem horror a hospitais, é diferente não ir visitar o primo que partiu a anca ou o primo que está a morrer; a acção e suas razões são exactamente as mesmas mas as circunstâncias são diferentes.

O Tempo e as Circunstâncias alteram tudo. O que quer dizer que a avaliação da acção permanente é diferente, conforme o tempo em que é avaliada.

Uma chatice, realmente.

Hélas!

domingo, 8 de agosto de 2010

Infância


Olhas para mim com olhos espantados e dizes pela vigésima vez que estás agoniada.

Olhas para mim com o mesmo ar com que o meu filho em pequenino me olhava, crente que eu faria desaparecer imediatamente as coisas más que soubesse existirem. Certamente que se elas não desaparecem é porque não sei da sua existência; e dizes-me novamente que estás agoniada, olhando para mim com os olhos espantados pelo mal que não se vai, esquecida que me informaste novamente dele há meio minuto atrás.

Dói-me a alma de te ver tão fora da realidade, tão inconsciente das limitações humanas, tão absurdamente confiante, uma criança pequenina, tão frágil.
E sei que não consegues reaprender a viver na imperfeição do mundo.

Resta-te o espanto perene das coisas não serem como deviam ser, o corpo não fazer o que precisas e as mais simples necessidades como um golo de sumo ou um guardanapo para limpar a boca terem de ser supridas por outrem. Quando há quem esteja lá, perceba o que necessitas, possa satisfazer essa necessidade e esteja para ter esse trabalho. Porque por vezes não está lá ninguém que reúna tudo isso, eu sei.
Estás como um bebé mas não exactamente como um bebé, porque os bebés nunca foram auto-suficientes. Tu foste e embora não te recordes com exactidão sabes confusamente que não é suposto esperar, para limpar a boca com um guardanapo...

É essa a razão do espanto no teu olhar, não é?

Esse olhar partiu-me o coração há muitos anos atrás mas o meu bebé sobreviveu e aprendeu a viver no mundo imperfeito em que não tenho poderes mágicos; com espanto e dor mas aprendeu. E eu espero que isso, de uma qualquer maneira tortuosa, o ajude na vida, fazendo a dor e o espanto sofridos terem alguma utilidade.

Só que tu não tens tempo para sobreviver com cicatrizes, como fez o meu bebé. O teu espantado sofrimento durará o resto da tua vida, não é? E eu não posso fazer mais nada além de estar quando posso estar, minorando o que posso minorar.

Olhas espantada para mim - não acreditas que eu não possa fazer desaparecer o teu sofrimento e não acreditas que ele se mantém depois de me informares.

E mais uma vez, eu não posso fazer nada além de fingir que vai passar em breve. Quando lá estou.

Hélas!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Oferta


A rapariga é provavelmente mais nova que eu e tem um montão de filhos lindos - louros, olhos azuis, feições correctas... Pelo menos 4 e são mesmo bonitos. Ou eram, porque já não vejo nenhum há alguns anos.

É pedinte profissional. Tem os tiques, a voz chorosa, a mão estendida de certa maneira, o ar triste e esperançoso que é tão típico.

Uma vez, já há muitos anos, bateu-me à porta e eu abri. Tinha a penúltima bebé no colo, linda! E pediu-me "se eu não tinha qualquer coisita..." com um ar choroso. Eu dei. Porque não? A minha vida era boa, a dela era menos boa e eu podia sem sacrifício.

Desde então, ela passa por cá tipicamente uma vez por semana, mais quando a vida corre mal. Quando ela toca, a minha gente (é um toque característico) diz sorrindo: - Vai lá que é a tua pobre.

E assim, devagarinho, passou a ser a minha pobre; tenho um bocadito de vergonha disso.

Antes do Natal eu costumo oferecer-lhe um cabaz e ela só volta 2 semanas depois mas aqui há cerca de 2 ou 3 anos, bateu à porta 3 dias depois para me oferecer um grelhador, daqueles de pedra com lamparinas por baixo. Disse-me que uma senhora lho tinha dado mas que ela não tinha uso para aquilo... Aceitei o presente que ainda hoje enfeita a parte de cima dos armários da cozinha, toda a gente sabe que aquilo com lamparinas não é nada prático (quem diacho serão as amigas da tal senhora?!?).

Hoje, quando bateu à porta, pediu-me ajuda para pagar o gás - o que em pobreguês quer dizer que precisa de dinheiro vivo e não de utilidades.

Aproveitou a visita para me oferecer uma caixa de 12 copos de pé, iguais aos que uso cá em casa. Novos e na caixa de origem: "A senhora não quer? Deram-me mas são muitos copos".

Eu quis e estes não vão para cima de armário nenhum. A minha pobre é porreira.

Hélas!