quarta-feira, 11 de junho de 2014

Mar

Já beijei recém-nascidos
E moribundos.
Já tive desgostos
E felicidades,
Já chorei e já ri
Já dormi e já velei;
Já fui à luta
E já fiz de conta.
Já sonhei,
Já despertei;
Já dei vida,
E já a tirei.
Já escrevi tratados
Sobre o bem e o mal,
E o lugar das coisas,
E a natureza do Homem.
Já alinhei poemas
E esparramei prosa,
Já pensei, já cantei,
Já falei, já gritei,
Também já calei.
Até já toquei piano,
Noutro tempo.

Agora não quero fazer nada
Deixai-me olhar o mar aqui deitada.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Aniversário

Faz cerca de um ano que não escrevo aqui. Porquê?

A resposta mais rápida é que outra plataforma online me leva o tempo livre. O que não sendo isento de verdade, é claramente falso...


Já disse aqui coisas muito acertadas, já disse imensa asneira, já opinei sobre coisas tão vãs como a roupa que se veste e já defendi teses profundas.

A verdade é que acho que esgotei o discurso, porque para mim e aparte pequenos apartes, o discurso deve ser racional, abstracto e abrangente; se não, é um aparte apenas - e para apartes, a outra plataforma é mais eficiente pois não é para o mundo, é apenas para o meu pequenino mundo.

Só me falta perceber se esgotei o discurso porque me aposentei da pensadura ou se na realidade e como muitos melhores do que eu afirmam, a vida humana é uma eterna repetição do mesmo.

Isto é só coisas que me ralam!

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Desilusão


Uma amiga uma vez numa conversa disse uma coisa que nunca mais esqueci, apesar da minha memória de galinha: “se te desiludiram é porque estavas iludida”.

Hoje, triste que estou por uma desilusão inesperada, resolvi debruçar-me sobre este assunto  e não consigo chegar a uma conclusão: será a minha tristeza uma coisa absurda? Não deveria, antes pelo contrário, estar feliz por estar mais perto da realidade?

Olhando para isto de uma forma fria, objectiva e racional, deveria. Mas na realidade não estou, o que prova de forma provada a minha inaptidão para viver num estado mental realista, a despeito do orgulho que tenho pela minha racionalidade.

Ou então ficarei feliz mais tarde. Como nos escaldões: dói imenso mas uns dias depois gostamos do tom tostado da pele.

Silêncios

Já há algum tempo, tive uma muito conversa muito interessante sobre o valor do silêncio.

Eu dizia que o silêncio em convivência normalmente é mau, que quando não se diz nada se está a concordar (quem cala consente) mas até isso é feito de forma pífia e dissimulada.
Quem não diz, demite-se do seu dever de honestidade e esconde a sua real opinião.

É confortável mas é falso, projeta uma concordância inexistente.
Não há conflito na concordância, o que torna especialmente interessante o facto do silêncio  normalmente surgir na discordância.

Comecei a reparar e raras são as pessoas que se apercebem disto... Propositadamente e a bem da ciência (ahaha), forcei respostas e ainda fiquei mais interessada no fenómeno: forçadas, as pessoas antes silenciosas acabam por expressar - de má vontade - a sua discordância. Só em espécimes realmente inferiores a falsa concordância é verbalizada e em geral nota-se que é falsa, como um capachinho.

Não dizer nada pode nem passar de uma forma de indiferença confortável. É óptimo, dizia-lhe eu, ficar em silêncio relativamente ao que nos é dito; a pessoa que fala até fica sem jeito de nos questionar, pois que estamos a concordar com o que diz...
Mas a concordância que lhe oferecemos é falsa e de certa forma até é triste, alguém querer partilhar connosco uma coisa que nos é indiferente.

O meu interlocutor não concordou de todo.
Ele defende que apenas o silêncio não é um peso para os outros; todo e qualquer discurso é uma agressão ao outro, que não tem nada que suportar o peso das nossas opiniões.
É muito melhor estar calado, não ofende, não agride e não exige resposta ou esforço do interlocutor.
O silêncio, diz ele, promove a paz e a convivência pacífica. Não ficar em silêncio é ceder ao narcisismo e não traz bem real a ninguém.

Suponho que, como de costume, a virtude deve estar no meio - nem sempre calado nem sempre falador.

Sim, deve ser. Mas cá para mim, o silêncio só é isso porque a esmagadora maioria das pessoas não suporta críticas.

Todos estamos convencidos que somos Cristo à face da terra, raios nos partam

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Abandono

Há uns anos largos, passou-me esta fotografia pelos olhos e guardei-a. De vez em quando, quando há coisas que me aborrecem de forma intensa, volto a olhar para ela, para verificar se o que me aborreceu é de facto importante; raramente é.

O que me toca nesta imagem não é a morte, é o abandono do corpo. E quando o corpo é infantil, o seu abandono é igualmente o abandono da esperança.
 

Nem o carinho de embrulhar o seu corpo num jornal velho esta criança teve. Eu, que tenho tanto, poderei ao menos viver a vida com alegria. Também em sua honra.

sábado, 6 de outubro de 2012

Caixote

Este caixote anda pelas ruas da amargura... O danado do FB é mais prático, a malta amanda-lhe com duas tretas e prontes, está o dever cumprido e os amigos com a alma serenada.
 
Fica no fundo do cerebelo, bem escondida e tímida, a sensação de que estamos a fugir da realidade...
 
Feiras e artes à parte, a nossa realidade é aquilo que quisémos um dia fazer, uma coisa assim inteira e com sentido, cabeça, tronco e membros, todos em sintonia e a apontar para ali.
 
Pois.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Camões


A malta queixa-se:

- Dói-me a perna
- Torci um braço
- A minha sogra tem mau hálito
- Parti um dedo no futebol
- O raio da sandália partiu-se e só tem 4 dias

No café onde tomam todos os dias o pequeno-almoço, sumo de laranja natural (muito saudável!) e uma sandocha de fiambre, a malta queixa-se:

- Tive de tirar a miúda do ballet
- Dispensei a empregada em metade da semana
- Já não vou ao concerto da Madona
- A chefe anda com ar de má
- A vida está pela hora da morte

Olham, preocupados, uns para os outros:

- Não sei o que hei-de fazer
- A culpa é dos gajos que não fazem nada
- O jardim Zoológico está caríssimo, acho que dão bifes aos leões
- Tenho medo de ir aos saldos
- Se eu mandasse, outro galo cantaria

É a calma do reino de Camões. A malta queixa-se, é um desporto barato.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

A adega é pública

Nós nunca termos visto não é exactamente o mesmo que ser uma coisa nunca vista. Pois, não há nada de novo à superfície da terra (já não me lembro de quem disse isto e obviamente que não me refiro ao filme).

Só que não é bem assim. Quem é que alguma vez viu, na História da Humanidade, toda (quase...) a sabedoria humana nas pontas dos dedos? 
Umas teclas e voilá - em segundos fiquei a conhecer o poema e o seu autor, mais umas notas biográficas que se consideraram relevantes para a completa compreensão do texto. De umas linhas adaptadas de acoli, fiquei a conhecer uma obra especial - em minutos. 

 Isto é tão completa e maravilhosamente tortuoso... 

Por um lado, a ignorância de hoje fica-se pela língua - quem não fala (mais propriamente, lê/escreve), fica de fora de uma parte do mundo (meu Deus e a China que é enoooooorme... Tenho de aprender mandarim). 

Por outro, a sabedoria está à disposição de todos mas é mais sabedoria do que aquela que o comum dos mortais consegue absorver e interiorizar. Não sei - duvido que alguém saiba - qual será o impacto desta adega à disposição de quem tiver sede. 

Eu sempre gostei de malta com bom vinho mas por outro lado não há pachorra para bêbedos.

Isto é só coisas que me ralam.

domingo, 3 de junho de 2012

A dança

Dançai, dançai
A dança da alegria
No parque sem crianças
Na terra vazia

Dançai, dançai
A dança da vitória
No chão sem pedras
Na morte sem história

Dançai, dançai
A dança dos vivos
Na fonte sem água
Na jaula dos cativos

Dançai, dançai
A dança dos clamores
No caminho sem lugar
No bosque sem flores

Dançai, dançai
Com energia
O futuro já não vem
Venha pois a magia

sábado, 26 de maio de 2012

Caca de cão

Sentada no banco do jardim, chorava.
As lágrimas caiam em fio sem soluços. Nada as impedia, as mãos enclavinhadas no colo na posição centenária de estoicismo.

A postura era rígida mas discreta: nenhum dos passantes lhe dirigiu um segundo olhar. 
A silhueta madura não atraía os jovens e o drama passava despercebido aos outros, aos solidários como aos abutres; talvez fosse essa a razão pela qual a postura se lhe tinha tornado familiar, uma defesa contra intromissões inconsequentes.

Os olhos abertos perscrutavam sem ver a linha do horizonte, uma coisa feia de prédios velhos e sujos. Não a via, os olhos só viam o que se tinha perdido, sem esperança e sem remédio. Sentia-se velha e trôpega, no dia do seu meio centenário
O seu tempo fora julgado sem préstimo, toda uma maneira de proceder, um conhecimento e uma experiência, toda uma maneira de estar, todas as escolhas da sua vida, tudo ajuizado sem utilidade. Como caca de cão.

Quando não há capacidade para todos no bote, lança-se ao mar os que pesam mais do que o que valem na travessia. Tinha sido lançada ao mar e a pena por si própria era maior do que alguma vez pensara possível.

O pombo aproximou-se, o olho vermelho a avaliar a possibilidade de haver pão naquela figura pesada. Voltou a cabeça para ver com o outro olho, igualmente vermelho de saúde; mas não havia dúvida que dali nada viria, era demasiado agourenta, demasiado escura, a figura.

As lágrimas caiam em fio sem soluços. Nem viu o pombo que, também ele, a ajuizara sem valor.