domingo, 8 de agosto de 2010

Infância


Olhas para mim com olhos espantados e dizes pela vigésima vez que estás agoniada.

Olhas para mim com o mesmo ar com que o meu filho em pequenino me olhava, crente que eu faria desaparecer imediatamente as coisas más que soubesse existirem. Certamente que se elas não desaparecem é porque não sei da sua existência; e dizes-me novamente que estás agoniada, olhando para mim com os olhos espantados pelo mal que não se vai, esquecida que me informaste novamente dele há meio minuto atrás.

Dói-me a alma de te ver tão fora da realidade, tão inconsciente das limitações humanas, tão absurdamente confiante, uma criança pequenina, tão frágil.
E sei que não consegues reaprender a viver na imperfeição do mundo.

Resta-te o espanto perene das coisas não serem como deviam ser, o corpo não fazer o que precisas e as mais simples necessidades como um golo de sumo ou um guardanapo para limpar a boca terem de ser supridas por outrem. Quando há quem esteja lá, perceba o que necessitas, possa satisfazer essa necessidade e esteja para ter esse trabalho. Porque por vezes não está lá ninguém que reúna tudo isso, eu sei.
Estás como um bebé mas não exactamente como um bebé, porque os bebés nunca foram auto-suficientes. Tu foste e embora não te recordes com exactidão sabes confusamente que não é suposto esperar, para limpar a boca com um guardanapo...

É essa a razão do espanto no teu olhar, não é?

Esse olhar partiu-me o coração há muitos anos atrás mas o meu bebé sobreviveu e aprendeu a viver no mundo imperfeito em que não tenho poderes mágicos; com espanto e dor mas aprendeu. E eu espero que isso, de uma qualquer maneira tortuosa, o ajude na vida, fazendo a dor e o espanto sofridos terem alguma utilidade.

Só que tu não tens tempo para sobreviver com cicatrizes, como fez o meu bebé. O teu espantado sofrimento durará o resto da tua vida, não é? E eu não posso fazer mais nada além de estar quando posso estar, minorando o que posso minorar.

Olhas espantada para mim - não acreditas que eu não possa fazer desaparecer o teu sofrimento e não acreditas que ele se mantém depois de me informares.

E mais uma vez, eu não posso fazer nada além de fingir que vai passar em breve. Quando lá estou.

Hélas!

9 comentários:

Fátima Santos disse...

e quando se tenta dizer palavras em cima de outras palavras o que ficam são riscos, gatafunhos, mais nada do que querer dizer-se que se leu, que se sentiu, que se viu para lá de cada risco, cada a, b, u, s ou x entrelaçados,e mais para lá, muito mais para lá do que ter lido, que o que se leu mesmo não está escrito
e por isso, podemos escrever palavras em cima das palavras que dos riscos surgem, decerto, o que quisemos escrever dizendo e não sabemos

Anónimo disse...

Amiga....

Já pensaste que esse olhar poderá não ser de espanto mas sim de amor, muito amor e carinho....sim, porque só tu estiveste e estás sempre lá...
Eu vi esse olhar e era de amor e vi tabém que tu retribuias, nem que fosse apenas num pequeno gesto como limpar-lhe a boca com a mesma ternura e amor...

mac disse...

És gráfica, Maria de Fátima, que bem escolhes a tua actividade actual...

Anónima, só uma irmã no coração me viu lá.

Mas não, não é um olhar de amor. É o olhar da inocente confiança absoluta que se vê traída e não acredita nisso.
Já o vi antes, sabes?

Blimunda disse...

Tenho andado por aí, Mac. Espantada com o mundo e comigo. Não devo, não posso, não quero dizer mais do que disse Maria de Fátima. Apenas que tenho andado por aí...espantada. Um abraço, amiga.

Anónimo disse...

Mac, por favor, como se agradece a quem nos dá o pão na boca e faz tudo?
Tento, tento, mas sinceramente não sei a resposta. Se calhar é impossível...

Penso que cuidar de alguém é tão penoso quanto ser cuidado por alguém.

Abraço grande

mac disse...

bli, por aí?...

Cãs, vou ser franca e directa: não se agradece. Há coisas que não fez qualquer sentido agradecer e essa é uma delas.

Vive-se. Sendo cuidado ou cuidando, vive-se como sempre se vive em companhia, tentando não impor demasiado ao outro, tentando apreciar o que a vida nos dá, não personalizando nenhum desses tontos papéis, de cuidado ou de cuidador - isso são coisas da treta.

Cuidar não é penoso, excepto quando o cuidado não entende as limitações existentes e pede mais do que lhe podem dar - nessa altura sim, é muito penoso cuidar pois estamos sempre confrontados com a insuficiência dos cuidados prestados.

Nunca fui cuidada, neste sentido; no entanto estou em crer que é exactamente a mesma coisa. Se ou quando for a minha vez de ser cuidada, tentarei aproveitar essa alegria, gozar o facto de ter quem me dê uma mãozinha com naturalidade e gozar o que essa mãozinha me dá. Sem agradecimentos, com satisfação e prestando atenção à vida da mãozinha.

Afinal, é o que toda a gente faz numa relação, não é?

Anónimo disse...

A sua resposta comoveu-me, concordo totalmente consigo. O que me custa é saber que quem me cuida já há 46 anos, apesar do cansaço e das dores, nunca irá ser cuidada por mim.

Mas a vida é mesmo assim, sejamos felizes medida do possível!

mac disse...

Cãs, que não lhe custe. Quem cuida de si fá-lo naturalmente...
Seja alegre como sempre, dance com rodas, aproveite a vida e o momento!
Isso pagará com juros altos todo o cansaço, acredite, porque até sei do que falo.

E quem a cuida certamente terá quem cuide de si quando não puder bastar-se, esse espírito prolonga-se no tempo.

Lembre-se: não há dívida, nada tem a pagar.
É simplesmente muito bom, quando as pessoas que amamos - e portanto cuidamos, seja a dar de comer seja a gerir o cansaço - são felizes.

Blimunda disse...

Por aí mesmo, Mac.

Ora, ora Cabelitos, mas que tens tu feito senão cuidar de quem cuida de ti. Cuidar não se resume a chegar o pão e a água à boca.