domingo, 19 de setembro de 2010

Um conto em Setembro


Jazia deitado na cama, enrolado sobre si próprio.

Mergulhado em sofrimento amorfo, sem esperança, imerso num cansaço entranhado nos ossos, um desânimo cuja profundeza não tinha medida. Não estava desesperado, o desespero leva à acção; estava... desesperançoso, um estado em que tanto a esperança como a falta dela não têm lugar.

Tinha os olhos secos - o choro é uma reacção à tristeza mas a tristeza requer razão e ele estava para além disso. O cérebro tinha-se ausentado num desligamento automático provocado por mecanismos de segurança interna - se pudesse pensar, teria já feito asneira - a natureza é sábia.

Ouviu ranger a porta mas tudo o que não exigisse uma acção imediata e inadiável era trivial e podia ser ignorado. Ignorou o ruído.

Assim esteve, muito e muito tempo. Quando a sede se tornou inadiável, levantou-se lentamente e foi à cozinha.

A porta estava entreaberta e em cima da mesa estava uma pétala. Pegou-lhe: estava murcha mas cheirava bem. Inexplicavelmente sentiu-se melhor, capaz de aceitar que nunca poderia providenciar por inteiro.

Desde que não tivesse medo nem egoísmo, que não colocasse em outros o próprio peso ou culpa, que não renegasse passado ou futuro, que não fugisse à própria incapacidade, a necessidade que não podia satisfazer seria como aquela pétala: murcha mas com aroma a paz.

Nunca mais fecharia a porta da cozinha - abençoado visitante, o que assim lhe devolvia a vida.

Hélas!

15 comentários:

teresa g. disse...

Faz falta no blogger um polegarzinho para dizer 'gosto disto'.

(É que podemos querer sublinhar que gostamos, mas achar que tudo o mais que acrescentamos é ruído)

mac disse...

Vai dar ao mesmo, teresa g., tks!

mac disse...

Os elogios devem ser dirigidos à Blimunda, as críticas podem ficar por aqui mesmo.

Mofina disse...

Mac, para si, uma rosa completa....

mac disse...

Mofina, terna, persistente, discreta...
Obrigada, muito a sério.

Blimunda disse...

Minha amiga, minha querida amiga...

mac disse...

Bli, tu tens o condão de inspirar a minha veia criativa, não foi esta a primeira vez.
Obrigada.

Blimunda disse...

O mais estranho é que depois da veia se esvair parece que o sangue é meu. :)

Caramba! Se todos atingissemos a elevação de conseguir que nenhum de nós tivesse medo nem egoísmo, que não colocasse em outros o próprio peso ou culpa, que não renegasse passado ou futuro, que não fugisse à própria incapacidade as nossas necessidades insatisfeitas não seriam mais do que pétalas murchas mas com aroma a paz e não a guerra, tormento e massacre.

mac disse...

Bli, é teu, sim... E meu, e de outros também, acho.

Sabes, acho que é uma guerra decente. Batalha a batalha, umas ganhas e outras perdidas mas é uma guerra decente, onde vale a pena o esforço... A bem de quem necessita.

Que cada um faça o que pode.

Luís Maia disse...

Este seu conto , sensibilizou-me, sobretudo a imagem da pétala que devolve a esperança, mas igualmente pela imagem final que deixa suspensa pelo menos no meu entendimento, que não andamos por aqui à toa, há sempre uma presença sublime que nos pode ajudar, assim lhes prestemos atenção.

mac disse...

Luis, não sei se andamos por aqui à toa mas ao menos saibamos dar por estes presentes singelos...

privada disse...

Eu nao digo é nada, fui exposto, sinto-me desnudado, vou encontrar uma nova couve para cá voltar.

mac disse...

privada, eu cá sinto-me couve!

Marques Correia disse...

Muito fixe, minha.
(Só agora reparei que estive uns dias sem vir aqui; rotinas que as férias quebram...)

mac disse...

Marques Correia, ainda bem que ocê gostou!